sexta-feira, junho 04, 2004

Virei a chave na fechadura. Fechei a janela. E sob a ilusória proteção daquele manto de falsa privacidade, me senti imunda e mais solitária do que nunca. Eu vi o futuro, meu amor: e ele é lindo. No futuro não será mais preciso trabalhar, você terá conquistado seu lugar ao sol. No futuro não haverão mais injustiças: eles saberão o teu valor. No futuro não existirão mais desavenças: você estará cercado de pessoas verdadeiras que nutrem sentimentos puros sobre você. No futuro não existirá mais frio ou solidão, pois todas as suas noites hão de ser preenchidas com festas e corpos quentes ansiosos por lhe aquecer.Durma bem, meu anjo. Que você tenha, em seus sonhos, essa visão maravilhosa do futuro que lhe aguarda. Você será muito feliz.E decerto não sentirá minha ausência.

Abri devagar a porta, sem me preocupar em não fazer barulho. Sabia que seria impossível escapar. Não o olhei nos olhos, nem proferi palavra alguma. Não quis me defender, nem esperava que minha total passividade o compadecesse, ou à mulher que se fazia cúmplice e companheira de meu suplícios.
Chorei, mas foi um choro mudo e seco- sem lágrimas e sem soluços. Talvez não tenha sequer sido choro. Apenas gosto de pensar assim, para não descobrir que perdi por completo a capacidade de reagir aos abusos que sofria. Não mais por achar que os merecesse- e sim porque simplesmente não me importava mais.
Eu não me importava mais.

Dentro do labirinto não há luz, nem escuridão. Dentro do labirinto há milhões de seres- mas ele é sempre deserto para quem o percorre. Encostada em suas paredes, descobri que a vida é feita de morte.

Desesperada, eu revirava armários, gavetas. Escrevi nas paredes palavras desconexas, com um batom há muito fora de moda. Em seguida, apaguei-as, esfregando minhas mãos com tanta força que as unhas quebraram-se nas bases, os pulsos doíam, sem que eu conseguisse atravessar para o outro lado.Eu não estava protegida: estava presa. Aquilo não era meu lar. E eu precisava sair.

Eu nunca seria capaz de superar definitivamente aquele trauma. Contentei-me em aprender a conviver com seu fantasma, e cheguei à conclusão de que enquanto ele assombrasse minha presença, ainda existia algo em mim que poderia ser salvo. Na calada da noite, ressucitava antigos amigos imaginários e punha-me a conversar com eles. Resignada, trouxe uma multidão de nomes sem rosto para dentro de meu abandono. E com isso minha existência parece menos miserável.
Não tenho ilusões sobre o futuro. Vivo de prestar contas ao passado. Tempos ainda mais difíceis virão.

A cicatriz é mais dolorosa que a ferida aberta.

Bati a porta atrás de mim, como se alguém fosse se incomodar em me seguir. Por alguns momentos, deixei-me embalar por meus próprios soluços sem me preocupar em parar. Deixei que as lágrimas lavassem meu rosto escondido por entre minhas mãos cobertas de sangue. Elas desciam mornas e vermelhas por meus braços, manchando assim minhas roupas, mas eu não me importava. Eu sequer era capaz de perceber.
Foi assim que me encontraram. Não ofereci qualquer resistência. Senti aquela dezena de olhares pousando em mim como lanças e esperei a dor, que nunca veio. Em alguns daqueles olhos havia misericórdia, em muitos havia ódio. Nos meus nada havia, e eu os trazia baixos, temerosos de talvez, num milagre, encontrar o amor.

Trazia estampado em mim, o sinal de uma dádiva que, naquele momento, ninguém haveria de me conceder.

Depois de tanto tempo, começo a perceber os sintomas gritantes da amargura que têm me dominado. A música me incomoda. A alegria alheia me perturba. O som de vozes calmas e pausadas, lembrando conversas de amor, causam-me uma repulsa tão física que chego a sentir na boca o gosto da bílis. Tenho a impressão de que tudo ao meu redor tem o único propósito de me fazer sofrer, sufocar aos poucos, sem no entanto pôr um fim definitivo nessa angústia.
Para esta noite, separei minha melhor roupa. Não me apressarei em pentear-me e desenhar com perfeição cada traço da maquiagem que fará desaparecer os sinais do tempo e do cansaço em meu rosto. Quando ele chegar, tomarei seu braço e sorrirei meu melhor sorriso, aqueles das noites de festa e luxúria. Dos tempos em que éramos, verdadeiramente, felizes.

Sozinha, sozinha.Sempre sozinha.
Não entendo porque ainda me queixo da solidão.Ela preenche meus dias tão completamente que não consigo lembrar-me da última vez que minha alma refetiu a luz da alegria, o som dos risos, o calor de outro corpo querendo estar junto ao meu. Ainda assim eu a renego, a recuso. Luto desesperadamente pela chance de ter algo cuja ausência faz de mim o que sou.

Na noite passada, estive com ela mais uma vez.
Sem culpa, sem receios e sem reservas, fui deixando que o acaso acontecesse. Encaramo-nos por um longo tempo antes que eu permitisse que ela tocasse meu corpo, mas ela sabia que eu não ofereceria nenhuma resistência, era um obstáculo fingido que nos separava. Um calafrio que tranformou-se num calor insano, e de repente ela se movia dentro de mim. Pensava em mim, falava por mim. Eu não queria: eu precisava.
Sabia que perdia, a cada segundo mais, tudo o que podia haver de digno em mim. E desejava isso.
Desejava.

Após sucessivos fracassos, é raro um ser humano que ainda mantenha o ímpeto de, ao menos sair com a cabeça erguida.A dignidade de uma pessoa é frágil na mesma proporção que sua personalidade se apresenta forte.Fiz nesta tarde chuvosa, uma nova descoberta.
Mas, quem se importa? Continuo sozinha, vagando nua entre as nuances de minhas paixões.Não protagonizo escândalos milionários, não grito a plenos pulmões por direitos que não me pertencem, não finjo que sou mais do que eu jamais poderia ser. Não sou.
Fantasmas existem.

Procurei em todos os lugares, sob todas as formas. Nas artes, nas ruas, nas pessoas, nas leis,nas contravenções.Procurei nas estrelas, e elas me apontaram um caminho impossível de ser trilhado. Voltei á terra e tudo o que encontrei foi mofo.Ai daquele que abre esta Caixa de Pandora, sem ter certeza de que viverá para ver o fim da jornada!
Vomitei, por dias seguidos, a podridão da vida.Contei os pombos que passavam em frente á minha janela: cada pombo um mau agouro, cada morte uma lágrima. Não mais.Dentro daquelas paredes escuras, marcas de uma violência que me era estranha.Eram gritos que ressoavam na madrugada, vindos de dentro dos tijolos, em meio aos azulejos, em toda parte.Eram eles! Eles que afugentaram os meus sonhos! Eles que roubaram tudo o que eu possuía de mais precioso!
Ignorante das seqüelas que teria de amargar pelo resto de minha indefinida existência, produzi o máximo de destruição possível.Poças d´água convertiam-se em avalances de desejo e vingança.Eu, que havia sido feita para amar, agora era a personificação da dor que se inflinge a quem nos inspira a mais irracional das aversões.Sangue. Ossos. Ira.A carne era arrancada aos pedaços pelas garras da incompreensão e do medo.Era só uma folha de papel, mas era tudo o que me restava!
Era isso. Eu nunca fora condenada.

Despi-me,desesperadamente.O efeito da droga estava passando, eu podia sentir.Não, não! Eu precisava de mais aquele momento de inlucidez!
-Por favor, dê-me agora..!
-Cale a boca.
Eu quase ansiava por aquele toque.Era horrível.Uma íngua especialmente dolorosa espetou-me nas virilhas e eu fui obrigada a curvar-me.Nem sei o que seguiu-se áqueles instantes que pareciam durar uma eternidade.A última coisa de que tive consciência foi seu peso grostesco em cima de mim, aquela carne estranha a dilacerar-me por dentro, sem carinho, sem palavras.
Fadas de cetim pairavam sobre minha cabeça, sussurando acalantos numa linguagem mágica.Fontes douradas jorravam água pura em meio á verdejantes jardins coloridos.Crianças...ah, os sons da infância!Concentrava-me em tudo o que havia de bom, recuperava lembranças de tempos imemoriais, que eu mesma jamais poderia alcançar.Tudo valia, em meu desespero para anular aquele êxtase pervertido.Mas, repentinamente, os cristais se quebravam.Era a guerra suja dos homens.Meu corpo, coberto de lama e detritos, como se eu houvesse sido banhada no gozo frio do Senhor do Caos.Maldita seja.
Recolhi,apressada, o dinheiro e a droga que foram jogados no chão, onde eu me encontrava.Ensaiei protestar por dignidade, como se eu não fosse, de fato, lixo.E como lixo arrastei-me pela imundície de meu ser para onde ninguém, nem a mais vil das criaturas pudesse me encontrar, até que fossem remendadas as feridas de meu fantasma.Incapaz.Incerto.Insone.Insano.
Parecia...parecia que eu estava sendo traída.

Nada.Um grande nada vazio e viscoso,como só o nada consegue ser.Perguntei-me a quanto tempo estaria lá, ou por mais quanto poderia permanecer.A espera, como sempre, era angustiante.
De repente avistei um vulto que se aproximava.Estaria sonhando?Não, sonhos não têm cheiro, e a característica mais marcante daquele momento era o perfume forte, embriagante, beirando o enjoativo, que envolvia todo o lugar, como se viesse da névoa.Senti toda a minha inspiração esvair-se, e decidi que nada mais poderia serfeito, senão preencher com clichés as pautas ansiosas de meu caderno de bolso.Abri-o, e senti que aquelas folhas me observavam, inquisidoras, conscientes de que seu destino era de minha total responsabilidade.Tive pena delas, tão inocentes, nas mãos de alguém que, definitivamente não as merecia.Tinha os olhos fechados quando pousei a caneta no papel pela primeira vez.Era como um cafajeste sujo, malandro de botequim, deflorando uma camponesa deslumbrada.Aquilo era nojento, porém irresistível.
As primeiras palavras saíram sofridas, tontas, sem rumo.Pouco a pouco, consegui decifrar algum sentido em meio áquele caos de letras, paixões e carnes imaginárias.Julgava-me louca em minha inexperiência, crente de que era a única a fabricar formas de vida independente através do papel e da tinta. Nunca redigi um só conto, poema ou ensaio: eles se manifestaram sozinhos, eu somente os escrevi. Era como mágica.E a mágica, como tinha de ser, foi-se um dia, sem aviso ou despedida.
Se deixou em mim essa lacuna vocacional, ao menos fez com que não alimentasse em mim, complexos de incompetência.Não se pode perder algo que jamais se possuiu.